segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Um cara estranho


Eu sempre digo que tocar bateria é uma habilidade meio idiota. Coisa de gente solitária, antissocial, esquisita. Ficar trancado num quarto dando porrada com dois pedaços de pau nums tambores até sair dali com habilidade suficiente pra fazer isso na frente das pessoas sem passar vergonha. Que vergonha. E como fiquei feliz quando soube que uma pessoa que divide esse pensamento comigo é Neil Peart, nada mais nada menos que um dos maiores baterista de rock de todos os tempos. Talvez por motivos diferentes. Eu, por olhar a vida com esse viés tedioso mesmo. 

Ele, por sua vez, era um intelecto superior. Um escritor, e até por isso uma pessoa de personalidade insular e que via a vida por uma perspectiva diferente da maioria das pessoas. Tinha horror ao universo das celebridades e não via o seu ofício na banda onde tocava, o Rush, como coisa de outro mundo, ainda que ela vendesse milhões de discos. Seu rosto estampava capas de revistas em todo o planeta, mas ele via isso como parte do trabalho. Tinha aversão à fama. Uma vez declarou que também admirava pessoas quando jovem, mas nunca pensou em invadir suas vidas por causa disso. No final da década de 80, quando a banda tinha pouco mais de 15 anos de estrada, já conversava com os colegas sobre sua vontade de parar de excursionar, para horror de todos. Tinha vários interesses na vida e a bateria era apenas um deles. 

Costumava dizer que já se sentia realizado após o ensaio geral antes de a banda cair na estrada, com luzes e produção total, quando ficava provado que três músicos conseguiam fazer o que faziam no palco. Para ele, fazer aquilo outras 80 vezes, em 80 cidades diferentes, com 80 passagens de som, tendo que se hospedar em 80 hotéis, longe de sua família, era um pesadelo. Nos últimos anos da banda, começou a viajar de moto entre uma cidade e outra, enquanto o resto da banda e equipe iam de ônibus, porque uma de suas paixões era o motociclismo. Foi um jeito que encontrou de aliar um de seus interesses com o trabalho e torná-lo menos maçante. 

Em um de seus livros, deixou clara sua gratidão por ter a oportunidade de viver de música, tendo a consciência desse ser o sonho de milhões de pessoas. Não era o caso de ingratidão, apenas a sua perspectiva de mundo. Aqui Neil Peart fala para um pequeno público em um de seus raríssimos workshops, explicando como construiu seu solo de bateria e executando partes dele, sem nenhum tipo de produção ou efeitos especiais. Apenas o brilhante baterista, como um professor pardal, todo entusiasmado, explicando e mostrando a todos como funciona a sua engenhoca. 

Caras como ele fazem falta nesse mundo.

O que ficou

O que ficou, a gente tem que juntar. Mesmo que aquilo que foi tenha sido a peça fundamental, que dava sentido e que fazia a coisa toda funcionar. Mas, se não está mais aqui, a gente tem que tentar encaixar tudo da melhor maneira, pra de alguma forma encontrar sentido, mesmo que por uma nova lógica. Não precisa esquecer como era. Toda beleza está guardada, todo sentido nos move a outros olhares, outros modos de entender como realizar novos cenários com aquilo que herdamos. Aquilo que está dentro de nós, que só a gente sabe o valor e só a gente consegue tocar, pra ir juntando com cuidado, peça por peça, e ir reconstruindo tudo com muito capricho.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Meu Reino


Não poder sair pra tomar uma cervejinha gelada com os amigos é realmente opressor. Vai deixando a gente melancólico. Primeiro você sente falta das rotinas e pessoas atuais, depois começa a voltar no tempo e quando vê está com saudade da amiguinha que sentava na carteira ao lado na escola.
E olha que fui casado duas vezes, mas nem no casamento era assim. Eu sempre consegui fugir, ou de casa ou do casamento. Na prisão os caras socializam, mas nós não podemos. No meu caso, que moro sozinho, é como ficar na solitária.

Claro que saio pra fazer coisas rápidas e necessárias durante o dia e logicamente tenho algum trabalho pra fazer em casa, mas sobra tempo livre demais. Aí você larga o livro, já viu um filme e vai ouvir um som no computador. E começa a olhar pra rede social e sente vontade de escrever. Enquanto está escrevendo em sua linha do tempo está bom. O pior é olhar para as fotos das pessoas, muitas desconhecidas, e começar a achar que são de verdade. Que podem interagir com você ou algo assim. Esse é o fundo do poço.

O melhor mesmo é começar a organizar as ideias aqui dentro da minha cabeça, onde realmente tudo acontece. Aqui eu mando. Seleciono quem quero ver, para onde quero ir, faço planos de fuga e traço metas inalcançáveis.

Pode até ser que o mundo vá ficando mais interessante aqui no meu reino. É perigoso até que querer ficar aqui pra sempre.

segunda-feira, 29 de abril de 2019

Antes da chuva



Antes da chuva, fui fazer uma caminhada pela cidade. Passei na frente do hospital onde nasci, continuei em frente e fui parar na escola onde aprendi a ler e escrever. Depois virei a esquina, desci a avenida e passei na frente do banco da praça onde muitas vezes esperei pela minha primeira namorada. Em seguida, respirei fundo e fui caminhando, até passar ao lado do cemitério onde um dia serei enterrado, talvez pisando exatamente no lugar do asfalto onde alguém vai derrubar uma lágrima por mim, enquanto acompanha o cortejo que sairá do velório. Não sei quanto tempo falta para esse desfile e não dá pra esperar ali parado, então, continuei minha caminhada e estou de novo em casa. Tomei um banho e vou descansar, pois provavelmente ainda tenho coisas pra fazer até as primeiras gotas começarem a cair.

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Existe muita vida lá fora



Nos últimos tempos li dois livros de não ficção escritos por artistas que admiro muito: “Sobre a Escrita” (Stephen King) e “Longe e Distante” (Neil Peart). Nas duas obras, os autores comentam sobre o esforço contínuo para não deixar que o trabalho se transforme no aspecto mais importante de suas vidas.
Alguém pode dizer que é fácil para artistas com talento e fama gigantescos dizer que o trabalho não os define, já que conquistaram independência para fazer tudo mais que desejarem. Mas acredito que justamente por seus nomes se associarem com tanta força aos seus ofícios, o conselho é bastante válido.
Fui jornalista durante 20 anos, trabalhando em diversos veículos de comunicação em Araraquara-SP e, mais de uma vez, pessoas poderosas e influentes bateram nas minhas costas e disseram “você é o melhor jornalista da cidade”. Claro que nunca acreditei que era o “melhor jornalista da cidade”, o que seria até patético, já que nem dentro da minha casa fui o melhor, pois meu pai foi um brilhante profissional da área.
Mas, por muito tempo, acreditei que ser jornalista era o que me definia, já que dediquei longas horas em redações de jornal, fechando edições, sem comer direito e longe das pessoas que me amam, apenas porque acreditava que aquilo me daria um futuro, seja lá qual fosse. Bem, o futuro chegou, minha profissão está cada vez mais desvalorizada e eu, assim como tantos colegas, não consigo mais apostar todas as minhas fichas no ofício que exerci durante tanto tempo.
Depois de duas décadas como jornalista, demorou um pouco para aceitar que tudo mudou. Fiquei meio desnorteado, me sentindo desvalorizado, achando que por não ser mais jornalista não era mais nada na vida.
Hoje sou artesão, estampo camisetas, atividade que me proporciona enorme prazer, pois une paixões como música e cinema, celebradas em peças personalizadas. Fiquei muito feliz também por descobrir que ainda posso aprender uma atividade e trabalhar nela tão bem quanto fazia em minha outra profissão.
Ainda trabalho em jornais como freelancer e continuo com necessidade de escrever, o que faço em espaços como esse, já que os antigos modelos se esgotaram. Mas é bom diversificar e descobrir outra profissão, principalmente porque hoje sei que, se não puder exercê-la mais, tenho condições de mudar de novo, quantas vezes for necessário.
As pessoas precisam rotular umas às outras o tempo todo. Se alguém está passando por uma fase ruim e exagera na bebida, logo vira “o bêbado”, ou se fica durante muitos anos fazendo as mesmas coisas em uma empresa, logo vira “o porteiro”, “a tia do café”, “o jornalista” ou até mesmo “o baterista”. Por isso é tão importante sabermos quem somos de verdade, independentemente dos rótulos que nos grudam na testa.
Se um dia fui “o jornalista” e não existe mais emprego na área, o que sou agora? Nada? Isso não é verdade. E uma amiga muito importante me ensinou justamente isso na fase em que ainda estava aceitando que teria de mudar de área. Ela olhou em meus olhos e disse: “Você é tão importante pra tanta gente, porque acredita que não é mais nada agora?”.

Seguem trechos dos livros que mencionei no texto:


“A última coisa sobre a qual quero falar nesta parte é minha mesa. Durante anos sonhei com uma peça de carvalho maciço que dominasse uma sala – nada de mesa pequena na lavanderia-closet de um trailer, nada de espaços apertados em uma casa alugada. Em 1981, consegui a mesa que eu queria e a coloquei no meio de um escritório espaçoso, com claraboia (um estábulo convertido em loft nos fundos da casa). Durante seis anos eu me sentei àquela mesa, bêbado ou fora de mim, como o capitão de um navio comandando uma viagem para lugar algum.
Depois de um ano ou dois sóbrio, eu me livrei daquela monstruosidade e montei uma sala de estar onde a mesa ficava antes, escolhendo os móveis e um belo tapete turco com a ajuda da minha mulher. No início da década de 1990, antes de saírem para o mundo, meus filhos costumavam aparecer à noite para assistir a um jogo de basquete, um filme ou comer pizza. Eles geralmente deixavam uma montanha de migalhas quando iam embora, mas eu não me importava. Eles vinham, pareciam gostar de estar comigo, e eu sei que gostava de estar com eles. Comprei outra mesa - artesanal, linda e com metade do tamanho da T. Rex. Coloquei no lado esquerdo do escritório, em uma quina sob o telhado inclinado, que parece muito com aquele sob o qual eu dormia em Durham. Mas não há ratos nas paredes e nem uma avó senil no andar de baixo gritando para que alguém alimente Dick, o cavalo. Estou sentado aqui agora, um homem coxo de 53 anos, com visão ruim e nenhuma ressaca. Estou fazendo o que sei fazer, tão bem quanto sou capaz. Passei por todas as coisas que contei aqui (e muitas outras que não contei), e agora vou contar a você tanto quanto puder sobre a profissão. Como prometido, não vai ser longo.
Começa assim: coloque sua mesa em um canto e, todas as vezes em que se sentar para escrever, lembre-se da razão de ela não estar no meio da sala. A vida não é um suporte à arte. É exatamente o contrário.”

(Stephen King – “Sobre a Escrita”)


“De volta a abril desse ano, pouco antes do início da turnê de Snakes and Arrows, fui entrevistado para um canal de TV do Canadá especializado em música, o MuchMusic. O cinegrafista colocou o entrevistador e eu na sala de ensaios, em frente à bateria, onde eu estava trabalhando já há várias semanas. Algumas das perguntas do jornalista pareciam pender para certa visão estrelada do meu trabalho, principalmente com relação aos shows, e tentei explicar para ele que eu não considero a turnê, ou até mesmo tocar bateria, como minha vida.
Ele pareceu perplexo, talvez tenha me julgado entediado e cínico, porque sua próxima pergunta foi: “Quando você começou a se sentir assim?”.
Parei para pensar por um segundo, então fiquei feliz em sentir a lâmpada mental acender com uma resposta verdadeira e clara. Pude responder com toda a sinceridade: “Cerca de um mês depois do início da primeira turnê, em 1974”. Foi realmente quando comecei a sentir que sair em turnê não era “suficiente”, o que resultou em adotar a leitura como um meio de aproveitar melhor os dias e noites na estrada.
Um pouco por mera contrariedade, mas parte pelo desejo de contexto, eu geralmente me refiro a tocar bateria com desrespeito deliberado, como “o emprego” ou “bater coisas com baquetas”. Obviamente significa muito mais para mim do que isso e tem sido algo central na minha vida, mas mesmo assim parece meio triste ouvir alguém dizer que seu trabalho é sua vida.
Não há amigos nem família? Nem leitura ou escrita? Nem trilhas ou esqui cross-country ou observação de pássaros ou andar de moto ou nadar?
Só trabalho?
Acho que não.
No começo da turnê, quando tocamos em Portland, Oregon, alguém da plateia parece que tinha assistido àquela entrevista, e se aventurou a discordar publicamente da minha opinião quanto à minha própria vida. Bem no fundo, à esquerda do palco, vi um cartaz enorme, com letras garrafais, em que se lia “NP – ESTA É SUA VIDA”.
Bem, obrigado, mas não, obrigado.
É claro que é apenas a minha opinião, mas para mim, minha vida não é dedicada ao lugar, mas à jornada e à hora da chegada.
Tendo consciência disso o tempo todo, sei que cedo demais vai chegar a hora da partida.”

(Neil Peart – “Longe e Distante”)

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Inservíveis


Remover do coração entulhos e inservíveis em geral ajuda a dar lugar a tudo que é novo e, ainda por cima, dificulta o contato com a zika e com todas as demais pragas que possam afetar nossa saúde.

domingo, 17 de dezembro de 2017

Randy Rhoads: o impacto da morte de um gênio


O baixista Rudy Sarzo se juntou à banda de Ozzy Osbourne no início dos anos 80 por indicação de Randy Rhoads, jovem guitarrista com quem havia tocado no grupo norte-americano Quiet Riot, na década de 70. Mas uma estúpida queda de avião matou Randy Rhoads em 1982, aos 25 anos, no meio da turnê, abrindo uma lacuna irreparável na música, tal a dimensão do talento demonstrado por aquele guitarrista em tão pouco tempo de carreira.
Além disso, Ozzy Osbourne, que à época lidava com seus demônios, principalmente o vício pesado em drogas e álcool, perdeu um amigo tão importante naquele momento de sua vida, que nunca chegou a se recuperar totalmente.
Depois de sair da banda de Ozzy, o baixista Rudy Sarzo voltou ao Quiet Riot e, apenas com a esperança de retomar seu prazer pela música, gravou o disco Metal Health, lançado em 1983, que acabaria se transformando no maior sucesso comercial do grupo.
Sarzo trabalharia depois com diversas outras bandas importantes, incluindo Whitesnake e a banda de Ronnie James Dio, com quem tive a honra de vê-lo tocar em um show em São Paulo, em 2004.

“A única razão pela qual deixei a banda de Ozzy foi a morte trágica de Randy Rhoads durante a turnê. Todos nós perdemos o prazer de tocar. Nós apenas seguimos a turnê para manter Ozzy ocupado e evitar que ele fosse para casa para literalmente beber até morrer. A cada noite era como se tentássemos alcançar o impossível: subir no palco e entreter as pessoas. Ainda que fazer música seja uma alegria, a audiência não deveria saber o quanto eram difíceis as coisas nos bastidores, por seguirmos com a turnê sem Randy Rhoads. Era virtualmente impossível e, ainda assim, subimos ao palco todas as noites.”


(Rudy Sarzo)